Todo amor, Vinicius de Moraes
“Todo amor é o que és. E alguém assim não morre nunca.”
Nunca ninguém lho tinha dito. Há vários meses que se sente morto. Afinal, alguém. Não consegue deixar de pensar nestas palavras enquanto deambula pelas ruas de uma Alfama deserta. Também este bairro seu, outrora apenas amor, amor intenso, saturado de dizeres, de cheiros, de discussões e pregões, de vida cheia, parece morto. Alfredo não se conforma. Cabrão do vírus está a matar tudo.
Entra no único café com a porta aberta. A escuridão interior trava-o. O olhar habitua-se. Cresce a silhueta volumosa da D. Rosa ao fundo, descaída sobre o balcão de mármore. Ninguém mais. Sente o instinto de trazer luz ao local, mas não imagina onde possa estar o interruptor. Talvez deixe de existir sempre que a luz se perde. Hesitante, aos apalpões, por entre os contornos da mobília que consegue vislumbrar, aproxima-se dela. A distância não é grande, mas Alfredo não consegue sentir-lhe o fim. Chega a praguejar por não ter procurado com mais afinco o interruptor da luz, à entrada. D. Rosa continua inerte. Pendente.
Já perto, Alfredo consegue tocá-la. No ombro. Levemente. Nada. Aproxima-se mais e sente as ondas do calor do seu corpo. Respira de alívio. Dá mais um passo. Aconchega o seu peito às costas dela. Abraça-a completamente porque incompletos não são abraços. Envolve-a. Tudo ali é amor. O corpo dela sorri. E ele sente-se vivo outra vez. Que se lixe o cabrão.
Lúcia da Cruz
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