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A mostrar mensagens de maio 3, 2020

Árvore

Sob a frondosa copa, Óscar dormia. Moldava o corpo magro entre as raízes, aninhava-se, pousava o olhar cansado. De mil folhas soltas fizera uma cama macia. Respirava fundo, de quando em vez, embalado pelos galhos percussivos que rangiam ao sabor da brisa. Lá em baixo, a cidade ainda ardia de medo. Catarina Coelho

Fantasia

Certo dia, Alguém nasceu no vazio. Como companhia, apenas dois propósitos: uma ampulheta e um sonho. Como não sabia o que fazer ao primeiro, já que o tempo casmurro passeava, restava-lhe o segundo. “Sonho águia me tornar! Se por aqui alguém passar, eu quero a plenos pulmões gritar: ‘Este mundo belo eu vi, chega perto, quero contar!’”. Como ninguém existia, ninguém o ouviu. Se outro alguém existisse, essa ideia roubaria; como só ninguém existia, então ninguém a guardou. O amassar do vento trouxe a insolência e o velho Alguém atraiçoado se sentiu, vil engano a chegada do sonho que não surgiu! Por fim, morreu. Um momento galgado, uma mão inocente pegou na ampulheta que do bolso de alguém pendia e, acto único, quebrou-a. Ora antes, ninguém nada mais era que garotinho e, com as primaveras, adulto Ninguém ficou. Determinado, os grãozinhos de areia amontoou e, de pronto, uma águia desenhou. Alexandre Mendes

Flutuar

... na tua voz que me alteia e me faz mergulhar num abismo de sorrisos de espíritos transparentes… de olhos cerrados enquanto me entontece o fresco sabor desta romã que abro, como se do teu coração se tratasse… no silêncio do sono-paraíso da criança que sonha com casas de lego (hum que saborosas são estas bolachas em cima da mesa da cozinha, são barcos e TraquinasAindaPorCima, mãe, ainda estão quentes, mãe, gosto tanto de ti mãe, és a melhor mãe do mundo, mãe) … no dedilhar das cordas desta harpa intemporal, quotidiano que nos empurra, quotidiano que nos arrasta, quotidiano que sobrevoamos como duas pequenas mantas caídas do arame pelo diálogo distraído de duas molas coloridas… no sal lacrimejante numa praia adormecida ao cair do sol (sim sou asas de ti) traz-me o mar dos teus olhos traz-me o mar dos teus olhos. Ondear em mim. Em ti. Paulo Martins

Arco-Íris

Toda a manhã assomava à janela e dizia – Bom dia! - se fazia sol ou chuva cinzentinha como a capa da Ti Joaquina que vendia sardinha na praça. Eu gostava daquela Tia de olhos de mar e também gostava da Joaquina porque tinha dois gatos: a Tareca e o Tareco, que era filho da Tareca. A minha Tia também gostava de mim e da Joaquina e dos gatos e todos gostávamos de sardinhas. Cresci. Fiquei igualzinha à Tia Celestina e ela ficou igualzinha à Ti Joaquina - “Tenho gatos pequeninos, tenho sonhos de luar” - cantava ela, e os gatos, esperando aquela sardinha acabada de pescar! E o tempo passou... Sinto falta das histórias da Tia que me faziam voar em tapetes andaluzes… dos seus abraços redondos, alaranjados… mas o pior das saudades são beijos doces, vermelhos de morango, coroados de “Bons dias” amarelos, como pintos, num campo de girassóis! Joaninha Lobo

Águia

Com vinte voltas no calendário é uma rapariga da província de princípios simples, mas meios complexos para alcançar os seus fins. Olhar de gaiata e um sorriso aferrado de quem se pôs em pé sozinha. Nasceu na seara e cedo sonhou com outros dourados. Entre tanto mato fez-se cão de caça, almejando ser ave de rapina. Nada a prendia à terra onde se conheceu, embotada, mirrada e muda. Partiu ansiando uma mancheia de tudo. Voar bem alto. Antes ser predadora. SVPSB

Pesadelo

Divago… Deambulo sem rumo num espaço, na extensão circunscrita do corpo, na área confinada do coração que queria que fosse o teu, no corpo, que sonho ser teu e é o meu! Devagar retorno, desperto, estou ainda fora de mim, dentro de ti. Em soluços e ranger de dentes, em sobressalto, em pânico por te perder, nesta letargia real, tangível, na certeza da perda, da merda que é saber-te fora, longe, saber-me só. Vejo-me então dentro de onde nunca saí, sinto encontrar-me, no corpo, no coração de mim próprio, no único corpo que aceita o meu, único que jamais poderei voltar a ter… No teu ventre, mãe. rtdealmeida

Maio

Vou atravessar a primavera. Não vais. Vou, é o tempo da primavera. Não, tira os sapatos. A primavera mudou-se, é tempo de inverno. Não, vou passear na primavera. Vou, entre janelas. Aurora

Livros

Eram aos milhares, de todos os tamanhos e cores. Sofia não se cansava de olhar para eles. Todos os dias, pouco depois de jantar, sentava-se na pequena poltrona verde em frente à lareira e ficava a admirá-los. Às vezes sentia o chamamento vindo das prateleiras de carvalho construídas pelo seu pai e cedia à tentação de retirar um, de sentir a rugosidade das suas capas, de inalar o odor a páginas acabadas de imprimir ou o cheiro de páginas antigas que contavam mil e uma histórias. Olhar para eles lembravam-lhe outros tempos distantes, quando era criança, em que as histórias eram a sua única companhia e os personagens os seus melhores amigos. Hoje, já adulta, não dispensava o prazer deste momento só seu. E, por isso mesmo, pegou num e mergulhou na sua história. Paulo Ferreira

Interesse

Tratá-la por «tu» tinha sido descabido, mas agora estava feito, pensou. Entrou em casa, pousou as chaves na cómoda, junto à fotografia da mulher. Enquanto arrumava as compras, perturbou-se com a imagem do sorriso solto que ela lhe retribuíra no supermercado e deixou-se levar pela imaginação. Pela primeira vez desde que ficara viúvo despertavam em si sentimentos há muito esquecidos, mas lembrando-se do carrinho dela carregado de coisas para crianças não quis acalentar esperanças. ... Não era mulher de introspeções, mas deu por si a pensar naquele encontro. Sentiu-se confortável com o sorriso oferecido (afinal, apenas respondera ao seu cumprimento) e satisfeita com o seu próprio aspeto. Recordou o conselho da sua avó «nem para o supermercado deves ir desmazelada» e desejou voltar a encontrá-lo. Perdida nestes pensamentos chegou ao destino, tocou à campainha e disse pelo intercomunicador: «Então meninos, a vossa mãe está melhor? Ajudem-me, comprei-vos montes de coisas» Miguel Madeira

Amor

Valentina insiste, insiste e nada. Procura há dias ter noticias do filho, acolhido num lar que não é o seu. Cambalhota desde nascença. Vida sovada, sofrida, tramada. No meio das cambalhotas da vida, o seu filho foi levado. Valentina insiste, insiste e nada. Reergue, há meses, a sua casa de porcelana rachada, dorida, quebrada. Repara, refaz, reveste e aquece as paredes e o chão a que o seu filho irá, um dia, regressar. Acredita ela. Valentina insiste, insiste e nada. Apertada, frágil, refém, insiste, insiste e nada. Valentina resiste. Pousa o telefone, embala o coração, e assiste à aula de História do seu filho pela televisão. Margarida Bruto da Costa

Festim

Entrei na praia e fiquei praia. O mar começou a correr-me nas veias! Ela abria-se para mim e eu percorria-a com todo o vagar, com toda a paixão da primeira vez. Entrei pelo seu mar adentro e deixei-me percorrer por aquele prazer sensual, aquela massagem que só o mar sabe dar, enchendo de mimos os recantos pressentidos mas inexplorados dos meus sentidos. Aquela beleza era um forte apelo à criatividade, uma tela a pedir “pinta-me”, as palavras a saltitar, reunindo-se em frases, construindo capítulos, tecendo uma trama, criando um romance na minha cabeça. Mergulhada no azul, boiando no azul, olhava aquele jogo de espelhos azul e sentia-me lambida de azul. Toda aquela sinfonia azul era uma perfeição, ali nada desafinava. O mar continuou a correr-me nas veias. Fiquei com sangue azul, eu fazia parte daquela realeza marítima! Entrei numa praia vazia e saí dela cheia e bêbada de azul. Eusdemim

Fracasso

Ela comprou uma casa onde não consegue entrar. Primeiro, foi a fechadura perra que recusava a chave. Depois, a porta demasiado estreita e baixa para os móveis. Em seguida, o pátio que evocava memórias do filho, precocemente perdido para as garras do cancro. E os murmúrios trazidos pelo vento da noite, num estalar de madeiras. Os diálogos intermináveis com os fantasmas que a povoavam. O curso superior inútil. A carreira despedaçada pela precariedade. A reforma mísera e incerta. Pôs a casa à venda como gostaria de vender a vida . Toda a vida: uma pedra sem porta. Helena Campos

Obscuridade

Estava deitado no silêncio daquela quase madrugada. A lua emitia uma luz ligeira e suave que penetrava a medo pelos intervalos das gelosias. Ao fundo ouvia o tic-tac monótono do relógio da entrada. Aquele relógio enorme e ruidoso, que ocupava um imenso lugar, logo à entrada da casa, mas que não podia vender por ter pertencido ao avô da minha mulher. De repente, a interromper aquele silêncio, um ronco horrível de automóvel, veio atormentar o meu sossego. Logo de seguida, o chocalhar das chaves, a porta a bater. O som daqueles passos inconfundíveis a subir a escadaria… E lá estava ela! - Alfredo, acorda. Já estás atrasado para o trabalho Anónimo

Honestidade

Encontrou um saco abandonado, espreitou e viu muitas notas. Era noite cerrada e estava sozinho, mas não hesitou, foi ao posto de polícia mais próximo, contou o que se passou e entregou o saco. Estava desempregado e era pobre, mas íntegro e com bons valores. Ele era assim! Onid

Inspiro

... expiro. falta-me o ar. atraso o relógio com o olhar. o apito da máquina indica a minha falha cardíaca. no ar o aroma da família. mal respiro. na boca seca o sabor do tempo. no meu corpo as mãos lá de casa. tento respirar..., ..., ... expiro. Maria Pia Setins

Mali

Por entre a paisagem árida e sem horizonte, o rapaz caminha. Apenas um trapo lhe cobre o peito, deixando o seu corpo magro exposto. O pó do deserto cola-se à sua pele de tez morena enquanto caminha, descalço, por entre a terra vermelha. Que procura ele, a sua aldeia, a sua família? O seu passo determinado e rigoroso afirma que sim. Nada lhe detém, nem mesmo as visões da morte e da fome. Um fogo pulsa-lhe pelas veias e bombeia o coração. Ele sabe que este não é o fim, que esta não é a sua casa. O caminho ainda é longo. Com ele caminha um cão, franzino como o seu companheiro. Ambos anseiam repousar no colo da família, no abraço de casa. Ambos resistem aos tormentos e obstáculos, guiados pela remota imagem do conhecido. Filipa Pacheco

Trevas

A terceira onda foi ainda mais forte do que a segunda. Em menos de uma semana, trezentas mil pessoas morreram. Só o silêncio da morte estava nas ruas. Não havia mais espaço nos hospitais, nem nos cemitérios. A população adoecia e morria em casa. Em caso de morte deveria se ligar para o Serviço Nacional de Saúde. Em algumas horas, um carro deixava um saco plástico para a família pôr o corpo e deitá-lo no passeio. O recolhimento era feito às segundas, quartas e sextas-feiras. No fim de semana, os corpos ficavam empilhados. Foi em um fim de semana desses que os primeiros lobos apareceram. Eles uivavam e arrastavam os sacos pelas ruas. Ninguém mais dormia. Quando amanhecia o cenário era de horror, com os corpos espalhados. O governo distribuiu armas para os moradores matarem os lobos. Este passou a ser o nosso passatempo nos dias infindáveis de quarentena... Fábio w.

Feto

A gata começou a sangrar pela manhã. Deixou manchas vermelhas como testemunhos das suas transgressões nos sítios por onde tinha passado e onde não deveria ter estado, como em cima do frigorífico. Preparou-se a sair, preocupada mas também chateada com o contratempo. Tinha outros planos. Café, pequeno almoço, duche. Ao sair do chuveiro viu uma forma nova no chão ao lado da sanita. Cocó? Vómito? Olhou melhor. Um gatinho calvo e quase perfeito envolvido por uma fina membrana transparente. Não mexia, mas ao pegar nele ainda estava quente. A gata ainda era muito nova. Talvez por isso. Lembrou-se das duas ou três vezes que a tinha encontrado num canto, apavorada, no jardim do vizinho. Devia ter acontecido numa dessas vezes. Sentiu uma certa tristeza. Ainda pensou guardá-lo mas não sabia com quê. E para quê? Pô-lo no lixo. A gata já não sangrava. Eva Oddo

Amém

—“À mãe”! “À mãe”! Que merda é essa que repetes, desde ontem, sem parar?! — gritou ele. — E o “pai”? Na tua igreja, onde andas sempre enfiada, o “pai” também é alguém, ou não?! — ironizou. — A s s i m s e j a! — continuou ele, pausadamente, com ódio. — Ao menos falasses em bom português! Mas não! A "santa" quer falar bem, como aprendeu na igreja! Acha-se acima aqui da besta! — vociferou ele, um segundo antes de se retrair involuntariamente. — Amanhã morrerás, estupor de merda! — explicou, finalmente, ela... Orpheu

Poço

Desejava toda a água que havia no fundo daquele buraco. Pensava que, eventualmente, essa água a pudesse preencher de novo, porque aquela que outrora existira dentro do seu corpo, da sua alma, parecia ter evaporado. Dava voltas ao buraco todas as tardes. Corria, esperneava, gritava, sempre com uma mesma frustração peculiar. Diziam que a água era um bem essencial ao ser humano e, pela primeira, ela vez sentia isso… de forma tão cruel. Um dia, acompanhada pela sua frustração habitual, encontrou uma pipeta. Um pequeno pedaço de plástico. Olhou para aquele objeto algo feio, que parecia dotado de uma força inigualável. Aproximou-se do buraco que parecia agora mais fundo. Desejou a água mais do que nunca. Saltou, e nesse preciso momento, viu-se sozinha na imensidão do universo. Quando chegou ao fundo, apanhou com a pipeta todas as pequenas gotas que conseguiu encontrar. Colocou-as em si e a felicidade invadiu-a. Carolina Pinto

Memória

E de repente não sabia onde estava. Piscou os olhos, espreitou em volta e sentiu o medo avolumar-se. Ocorreu-lhe que tinham combinado um assobio especial para quando se sentisse aflita, mas não se conseguia lembrar de como o fazer. Começou a dizer o nome dele em voz alta enquanto o procurava pela janela. Só então reparou nas outras pessoas. Olhavam-na com uma expressão curiosa, como se fosse um bicho estranho. Calou-se. Quis sair dali a correr, mas não saberia para onde. Tentou reconstituir o caminho que tinha feito, mas os pensamentos fugiam-lhe. Maldita doença que aos poucos lhe levava tudo. Pensou nas filhas. Recordou viagens de carro que não se repetiriam. Canções que não mais entoariam. Seria, ainda, capaz de as cantar de cor? Sem se aperceber, começou a assobiar. As vozes em seu redor silenciaram-se. Fechou os olhos e esperou. Ele haveria de chegar. Ana Vargas Santos

Saudade

Na Primavera, a Andorinha chegava a Lisboa; e todos os dias, antes de amanhecer, a Andorinha e o Pardal encontravam-se nas escadinhas da Mouraria. Juntos, voavam até à franja de areia que dá para o rio, no Terreiro do Paço. Nesse pequeno areal, até o sol nascer, a Andorinha e o Pardal falavam e brincavam. Jogavam às escondidas no labirinto de estacas de madeira junto ao cais. Contavam histórias, enquanto procuravam minhocas. E, juntos, riam-se das aventuras da Andorinha a tentar caçar gafanhotos no deserto. No Outono, a Andorinha despedia-se do Pardal e voava para os lugares onde o tempo era mais quente. E todas as madrugadas, o Pardal descia da Mouraria para o rio. Sozinho, na mesma franja de areia, o Pardal ouvia a Andorinha a contar as suas histórias – e sorria, até à Primavera seguinte. Alice B. Sobral

Naufrágio

“Ponto e vírgula, dois pontos, ponto de exclamação!” - Gritava o ponto final à página de rabiscos desconcertados em tinta permanente. “E quando chega a minha vez?!” - Interrogava o ponto agora com uma forma mais inchada e tom avermelhado. Nunca mais terminava aquele texto para que entrasse com pompa e circunstância. Não gostava de ser um pontinho final, daqueles que intermedeia frases pequenas, sem sentido, apenas porque quem as lê precisa de respirar. “Poetas, escritores ou os armados em… ficam-se pelas reticências sem dar um fim triunfante, como merece, qualquer pedaço de latim bem condimentado.” - Cacarejava o ponto cada vez mais inchado, vermelho e enfurecido. Mas, a sua espera foi tão longa que não passou de um ponto morto sobre a folha perdida na praia a que o tempo levemente roubava os rabiscos, a pontuação e as próprias linhas pautadas agora confusas, entrelaçadas e sem direcção. Escafandro