Textos Vencedores | 2º Lugar | Valerius Maximus

 MICROCONTO


Mãe  chegou  bem  STOP  malas  extraviadas  STOP  em  que  mala  vinha  mano  STOP  polícia faz  perguntas  STOP  beijos  pai  STOP



ENTRADA NO DICIONÁRIO


mu-rosanima

(Do japonês kabe (muro) e seishin (espírito))

Sem género definido

- Expressão usada no Xintoísmo e no Budismo, para designar a manifestação sobrenatural das almas das crianças mortas nos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki, e cujo espírito ficou gravado nas paredes e nos muros como resultado da temperatura da explosão. Todos os anos, os avistamentos multiplicam-se naquela efeméride, e a tradição de as representar em muros e paredes perdura até hoje no Japão.  

* A não confundir com Hibakusha (被爆者 vítima de bomba), literalmente ""pessoas afetadas pela explosão"", a expressão japonesa usada para os sobreviventes"



CARTA


Ex.mo Senhor proprietário da Casa do Outeiro

Casa do Outeiro

Avenida Saboia, Monte Estoril

Portugal


Lisboa, 20 de setembro 2020

Ex.mo Senhor


O meu nome é Justino e tomei a iniciativa de lhe enviar esta carta porque vivi na casa que adquiriu, neste dia, há vinte anos. Escrevo-lhe para partilhar consigo a minha herança de recordações da infância. Espero que reconheça a importância do meu legado e que me ajude a perpetuar, para as gerações futuras, o valor sentimental deste seu património.

Gostaria de lhe revelar um segredo: naquele tempo, a casa habitava-nos. Ela morava em nós. Nós eramos a terra sobre a qual se erguia o desejo de sermos felizes. Nós eramos o pó tornado pedra das paredes que sustentavam os nossos sonhos de meninos. Nós eramos a cal com que a casa se vestia e toda ela resplandecia em nós, branca. Nós eramos a madeira das tábuas que pisávamos com os pés descalços. As portas eram as nossas bocas que chamavam – Pai! As janelas eram os nossos olhos que descobriam o mundo – Mãe, o que é aquilo? As árvores no jardim eram um abraço de sombra. Os caminhos e as escadas em redor da casa eram um labirinto para nos perdermos. A casa era um desatino. Escavávamos o relvado à procura de tesouros imaginários, corríamos escadas acima, bulhávamos escondidos nos quartos, chorávamos a comer a sopa e depois adormecíamos no colo dos nossos pais. A casa metia-se-nos debaixo da pele e o seu tempo corria-nos nas veias. De noite, a casa também dormia. Os nossos pais apenas fechavam os olhos e aguardavam pelo raiar da aurora. O seu sono fingido era uma vigília. De manhã, com um estremecimento de luz, nós acordávamos. Fomos nós que demos vida à casa.

As crianças cresceram e os pais envelheceram. Um dia todos nós partiremos, mas não levaremos a casa connosco. Do alto das nuvens, bem lá no alto, de onde ainda poderemos ver a casa, nós sorriremos porque sabemos que a casa, com a sua egrégia sabedoria, já terá vislumbrado novos corações para habitar. Não sei se esta carta lhe chegará às mãos, mas gostaria de lhe pedir que fizesse, hoje, uma pausa para ouvir o palpitar da casa no seu coração.


Cordialmente

Justino


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