TOP 10 | Cartas Poema | Alexandre Severo

 

"Camarada,

 

Começo esta carta de uma forma que te vai agradar sobejamente: a dizer-te que tinhas toda a razão.

 

Estou mesmo a transformar-me num cinzeiro para cigarros humano. Num daqueles velhos que dedicaram com toda a diligência e seriedade décadas inteiras a trabalhar - e só a trabalhar - e que agora não são mais que o produto de uma metamorfose, pobres criaturas-sofá, cujo conceito existencial e ontológico é a calvície e a picagem do ponto. Sou alguém reduzido à condição de IRS modelo 3, Anexo A trabalhador por conta de outrem - mas, bom, ao menos tenho todos os confortos que se pode exigir a uma mansa vida de classe média.

 

Na última segunda-feira fui almoçar à cantina da repartição. E deixa-me dizer-te: há qualquer coisa de bexigoso, de sol macilento, de paracetamol genérico, de tinta descarnada, de valdispert, de perturbações nervosas ligeiras, de pontos seborreicos no nariz em ir almoçar ao refeitório de uma repartição das finanças. Um cheiro a decadência mediana, a apodrecimento leve, como água de lata de salsichas, o odor de um bolso de calças não lavado há quatro semanas.

 

Alguns dos funcionários de meia idade, meus colegas, são como aqueles móveis maciços, cor cerejeira, relíquias de feira da ladra que atulham casas e engasgam salas. Outros são naperons que adquiriram a forma humana e agora se movem pelo mundo, apanham autocarros e vão à esteticista.

 

Ouvem-se vozes esganiçadas, urros de sangue de exércitos em marcha, dois milhões de gralhas prestes a serem aniquiladas, lançando o derradeiro grito puro, aquele que brota com a lucidez de quem vai morrer, mas que, nesta cozinha, estão travestidos em vozes estridentes que anunciam o casamento de uma filha, o recital de piano de neto de um neto, uma ida ao médico para medir o colesterol.

 

Enquanto terminava os meus vegetais empapados em gordura caseira e apreciava a dor de costas do meu corpo deformado pela secretária, um corpo funcionário, um corpo burocrata, vi, com os olhos míopes, que quatro cabelos (mais do que o habitual), se desprenderam do meu crânio e pousaram gentilmente na mesa, languidamente como uma Vénus de Urbino, quase eróticos, como as odaliscas daquele quadro de Ingres (fui ver à Wikipédia) e pensei

 

“tenho de me despedir e ir fazer outra coisa qualquer”

 

E tu, como é que a vida te tratou nas últimas duas décadas? Li que vão fazer uma digressão pela América Latina. Se a banda precisar de um guitarrista avisa, voltei a tocar.

 

Um abraço,

Jorge”

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